Organizações da sociedade civil alertam sobre impactos na construção e no planejamento do uso de rios para transporte de cargas

Um dos principais desafios na infraestrutura brasileira é ter um planejamento para o transporte de cargas em áreas sensíveis que integre, desde o início, aspectos sociais e ambientais, com transparência e participação social

Um dos grandes desafios para o desenvolvimento econômico e social do Brasil com responsabilidade ambiental é a melhoria da infraestrutura nacional. Isso envolve decisões para melhorar a logística interna e de conectividade com outros países. Um dos possíveis caminhos é o país criar formas para planejar e decidir melhor onde priorizar seus investimentos em infraestrutura de transportes, como hidrovias e portos. Estes podem ser vetores de desenvolvimento sustentável ou geradores de desastres ambientais, exclusão social e desperdício de recursos. Depende de como são pensados, planejados e realizados.

Essa foi uma das principais conclusões do webinar “Hidrovias e Portos para a Exportação de Commodities: Desafios para a Governança Socioambiental”, realizado no dia 15 de agosto, organizado pelo GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental. Contando com a participação de pesquisadores, lideranças de movimentos sociais e Ministério Público Federal, o evento analisou o contexto político-institucional, o marco legal de planejamento, licenciamento ambiental e concessões, e casos específicos de hidrovias e portos na Amazônia e na bacia do Alto Paraguai, abordando impactos socioambientais e estratégias de defesa de territórios e direitos. Links: https://www.youtube.com/watch?v=Xz1SMExNM90 e https://www.youtube.com/watch?v=FxDxCRZNLZs&t=1584s

Segundo a maioria dos participantes, existe a necessidade de melhorar a transparência e a participação da sociedade civil no planejamento de transportes, com a institucionalização de mudanças no processo decisório. A carência por melhorias começa na fase inicial de planejamento setorial, momento em que devem ser avaliadas as demandas do país e as melhores alternativas para o seu atendimento, argumentou André Luis Ferreira, diretor-executivo do Instituto Energia e Meio Ambiente (IEMA). De acordo com as boas práticas de planejamento, o primeiro passo é identificar os problemas atuais e futuros relacionados à infraestrutura do país. Nesse processo, é importante esclarecer as posições dos diferentes grupos de interesse envolvidos (como usuários, operadores de transporte, pesquisadores e cidadãos) em relação a esses desafios. “Apesar dos avanços inegáveis verificados nos últimos anos, persistem alguns problemas importantes no processo decisório de investimentos em infraestrutura de transportes no Brasil. Grandes projetos de infraestrutura de transporte ainda são definidos a priori e considerados dados de entrada nos planos setoriais, e não o resultado de um exercício de planejamento orientado para identificar gargalos logísticos, priorizá-los e encontrar as melhores alternativas econômicas e socioambientais para solucioná-los.”

    Uma proposta discutida no webinário é que o planejamento de hidrovias, e de forma mais ampla o Planejamento Integrado de Transportes (PIT) e o Plano Nacional de Logística 2050, expressem compromissos com a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, garantindo mecanismos de transparência ativa da sociedade civil, com a institucionalização de melhorias no marco legal dos projetos decisórios.

Do contrário, explica, as preocupações sociais e ambientais só aparecem no licenciamento ambiental, quando o projeto se encontra em estágio já avançado, dificultando a inserção pautas sociais e a inclusão das demandas territoriais. O que resta é um trabalho de compensação ambiental, de melhorar os projetos, que dificilmente são revertidos.

A maior parte dos atuais planos de expansão do transporte fluvial está focada na região amazônica, priorizando o barateamento dos custos de exportação do agronegócio e da mineração via a chamada “Arco Norte”, tipicamente envolvendo conexões “intermodais” com rodovias, ferrovias e portos. Porém, pouco se menciona as consequências na Amazônia para o equilíbrio de ecossistemas aquáticos e terrestres e para a segurança alimentar e territorial de comunidades ribeirinhas. Por exemplo, um dos riscos apontados no webinar, que tem recebido pouca atenção, é aumento significativo da contaminação da água por óleos oriundos do transporte fluvial. Outro problema central é quando hidrovias e outras obras para corredores de exportação de commodities impulsionam processos como a expansão desenfreada da soja, associada ao desmatamento, grilagem de terras públicas e expulsão de comunidades locais, em contextos de fraca governança territorial.

  O licenciamento ambiental de hidrovias é sempre tratado de forma pontual, como no caso de portos ou dragagem de um trecho de rios, sem considerar os impactos mais amplos de hidrovias, inclusive impactos sinérgicos e cumulativos, e sem coordenação efetiva entre o governo federal, estados e municípios. Além disso, a outorga do uso da água pela Agência Nacional de Águas (ANA) não é articulada com o licenciamento ambiental o que, segundo os debatedores, já configura um problema em si, pois não considera os reais impactos socioambientais. O Procurador da República, Ministério Público Federal do Pará (MPF/PA), Igor Lima, ainda afirma que atividades inerentes a atividades econômicas que precisam de água, que são considerados usos indiretos, não entram nessa outorga. Para Lima, “não há preocupação com a solução de problemas socioambientais reais”. “É uma questão puramente mercantilista, que leva em consideração apenas aspectos econômicos, e não como isso vai impactar o consumo humano e o ecossistema.”

No caso do planejamento e licenciamento ambiental da hidrovia Tocantins, foi identificada uma série de problemas que colocam em xeque a viabilidade socioambiental e econômica do empreendimento. Mesmo assim, ela obteve uma Licença Prévia no apagar das luzes do Governo Bolsonaro e está prestes a receber uma Licença de Instalação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), permitindo a derrocagem do Pedral de Lourenção, sítio de enorme relevância socioambiental e obras de dragagem do rio. O estudo de impacto ambiental, realizado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), ignora uma série de riscos socioambientais como impactos sobre espécies de peixes que habitam os pedrais, fundamentais para a segurança alimentar e a economia de comunidades locais, não mencionadas e nem identificadas.

Segundo Iremar Antonio Ferreira, coordenador do Instituto Madeira Vivo no estado de Rondônia, a expansão de hidrovias na bacia do rio Madeira desconsidera uma série de riscos socioambientais e aspectos de viabilidade econômica. “As populações que vivem nos arredores dos rios, muitas vezes, não possuem nem mesmo abastecimento de água, além de que não existe nenhuma escuta às comunidades e suas demandas”. Para Iremar, a proposta de dragagem não leva em consideração os efeitos nocivos de longo prazo que podem comprometer a saúde do rio e suas funções ecológicas. Em vez de buscar soluções sustentáveis ​​e ecologicamente corretas, a dragagem ameaça alterar o equilíbrio natural do rio, impactando a fauna e flora de seu entorno e prejudicando comunidades ribeirinhas que dependem do rio para seu sustento.

Embora o governo federal diga que seja foco de integração regional latina-americana, o planejamento do projeto “Rotas de Integração” continua sendo o escoamento de grãos e minério para mercados de exportação, especialmente para a China, com baixo valor agregado e elevado custo socioambiental. Para o professor da Universidade de Brasília, Joerg Nowak, o plano, na verdade, “é mais uma maquiagem do que uma verdadeira integração regional”. De acordo com Diego Saavedra, líder de projetos do programa de direitos do Justiça Socioambiental, do Derecho, Ambiente y Recursos Naturales (DAR) no Peru, é importante garantir estudos mais robustos sobre intervenções como a dragagem para hidrovias voltadas ao transporte de commodities, abordando questões como a dinâmica de rios em planícies da Amazônia que carregam sedimentos e impactos sobre os meios de vida de comunidades originárias. No Peru, a mobilização das comunidades indígenas e o envolvimento da comunidade científica evidenciou a inviabilidade socioambiental e econômica do projeto da Hidrovia Amazônica, levando ao seu cancelamento.

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